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Em vias de completar 76 anos os trólebus de São Paulo têm bastante a nos ensinar e fazer refletir sobre a cidade, sobre políticas públicas e sobre nossa relação com a tecnologia. Mesmo com todas as dificuldades, o sistema – em conjunto com o do ABC Paulista – ainda é o maior da América Latina, porém não tanto pelo seu sucesso mas sim pelo descaso e desmonte de seus pares em outros países que também chegaram a ter tantos veículos e com redes tão abrangentes quanto as nossas.
Mas antes de falar sobre o trólebus no presente, e de apresentar o futuro deles, precisamos voltar no tempo e explicar, o que é um trólebus, no fim das contas?
A resposta curta seria a de que um trólebus é um ônibus elétrico alimentado por fios suspensos no ar, através de uma alavanca que é pressionada para cima com o uso de molas ou pistões. Mas para entendermos o contexto de cada aplicação dos trólebus pelas cidades ao redor do mundo temos que ir além de definições básicas.
Passado
Tecnologia
Vem-se o asfalto, vai-se o trilho.
No mundo
Novo fôlego
Crise
Presente
A revolução das baterias
O trólebus de ponta
Futuro
Passado
Sua invenção se deu no fim do século XIX, mas a aplicação no formato que conhecemos hoje se intensificou na primeira metade do século XX. O motor a combustão interna não estava refinado ainda, e essa é uma questão diretamente relacionada com a necessidade dos trólebus em primeiro lugar.
Ao longo do século XIX o transporte público se dava ou por carroças puxadas a cavalos que naquela época já faziam linhas regulares e pela europa já havia convencionado chamar de “Omnibus”, ou por bondes que deslizando com pouco atrito sobre trilhos, poderiam ser muito mais pesados e carregar muito mais gente usando o mesmo número de cavalos.
Com o refinamento do motor a vapor a possibilidade tanto de um “Omnibus” quanto de um bonde autopropelido havia sido experimentada, mas mesmo no final do século XIX isso ainda era complexo, pesado e caro, e por isso sua adoção fora restrita. A eletricidade mudou tudo.
Na virada do século a eletrificação como meio permitiu que o motor a vapor fosse movido para uma casa de força dedicada na qual tamanho e peso não seriam empecilhos. Com máquinas maiores temos também as eficiências advindas pela escala. Nos veículos em sí ficariam pequenos, leves e simples motores elétricos que permitiriam uma flexibilidade muito maior em sua construção.
Tecnologia
Para coletar a corrente elétrica em movimento, muitas técnicas foram inventadas e testadas: sapatas correndo em trilhos energizados ou então arcos, pantógrafos, alavancas ou roldanas fazendo pressão vertical em fios. O processo de convergência tecnológica culminou na Europa usando coletores em formato de arco para seus bondes que se convencionou a chamar de “tram”, e na América do Norte, onde seus bondes são chamados de “trolley”, o uso de alavancas com a sapata coletora deslizando pelo fio passou a ser tido como padrão. Elas passaram a ser conhecidas como “trolley pole”.
A diferença sendo que pantógrafos e coletores de arco tem uma liberdade de movimento apenas vertical que é necessário para fazer pressão no fio logo acima e manter um contato elétrico consistente, porém tendo uma área de contato larga, não exige a capacidade de movimento lateral para acompanhar o fio. Sem o risco de escapar do fio, hoje é o método preferido para veículos que trafegam em uma rota predeterminada como no caso de veículos sobre trilhos.
Alavancas por sua vez tem uma liberdade de movimento muito maior, sendo basicamente uma barra que tem como pivô o teto do veículo com uma mola que pressiona-a para cima mas também permite movimentos laterais. Na outra ponta vai um coletor de carbono ou uma roldana que possui um sulco que encaixa diretamente no fio, deslizando por ele como se fosse um trilho de ponta cabeça. Isso abre a possibilidade de uma maior flexibilidade na construção da rede aérea que não necessita seguir um gabarito preciso com o fio correndo exatamente acima dos trilhos.
No caso de veículos sobre trilhos, o retorno da energia se dá pelo próprio trilho metálico que por estar aterrado no solo tem potencial neutro, não representando nenhum risco aos transeuntes. O positivo, tipicamente a 600 ou 750 volts em corrente contínua é fornecido pelo fio logo acima.
Com essas tecnologias o bonde elétrico se multiplicou em centros urbanos ao redor do mundo e foi nesse início do século XX que também surgiram os primeiros trólebus com alavancas, como conhecemos hoje. Pela semelhança com os já existentes trolleys, acabou pegando o nome trolleybus que foi aportuguesado para troleibus e por conseguinte, trólebus.
Por rodar sem trilhos é necessário dois fios, um para o positivo e o outro para o negativo, e por ser um ônibus com a capacidade de esterçar, desviando de obstáculos ou encostando na lateral da via, a alavanca seria a única forma de manter um contato consistente com os fios. Estamos falando verdadeiramente de uma tecnologia com pouco mais de 100 anos de idade.
Sem a necessidade de fazer grandes intervenções nas vias para a instalação de trilhos, os trólebus foram se popularizando como uma alternativa tecnológica aos bondes, em muitas cidades sendo instalados ambos os sistemas, porém logo o trólebus demonstrou uma vantagem incontestável.
O mesmo coeficiente de atrito do metal que antes permitiam cavalos puxarem grandes bondes, agora serviam de empecilho para os potentes e torcudos motores elétricos propulsionarem os bondes, agora mais pesados, morro acima.
Por usar pneus de borracha em contato direto com o calçamento, sua performance em ladeiras o tornou a solução ideal em rotas de percurso muito acidentado. O torque instantâneo do motor elétrico também permitia fortes acelerações no plano.
Porém também foi nesse início do século XX que as equações que ditam a viabilidade econômica dos bondes e trólebus começaram a mudar.
Paralelamente, na primeira década do século XX o carro elétrico com baterias de chumbo-ácido ainda era o mais vendido, mas na segunda década o motor a gasolina já era mais flexível, e dado as limitações das baterias da época já eram mais potentes e com recursos que ofereciam conveniência similar, como o motor de partida.
Os ônibus a gasolina também se popularizaram nesse cenário, mas os trólebus continuaram (até hoje, inclusive) a ter uma performance superior por não depender das limitadas e pesadas baterias.
Quando chegamos na década de trinta, com o refinamento do motor a diesel, os ônibus a combustão interna poderiam crescer e competir diretamente com os, agora inconvenientes, bondes.
Vem-se o asfalto, vai-se o trilho.
O carro precisava de espaço e nessa toada muitas cidades ao redor do mundo desmantelaram seus sistemas de bondes que eram vistos como inimigos da boa fluidez do tráfego. A manutenção mais complexa dos trilhos, o desejo de asfaltar vias de paralelepipedo, e a readequação do viário para contar com binários de ruas de mão única acabou resultando na substituição dos bondes por ônibus a diesel e em algumas ocasiões pelo trólebus.
Pela similaridade do sistema de coleta de corrente, em muitos casos foi apenas removido os trilhos e reconfigurado a rede aérea para ter um fio a mais. Foi nessa São Paulo do Plano de Avenidas do Prestes Maia que a desativação dos bondes toma curso com a criação da CMTC: Companhia Municipal de Transportes Coletivos, como o nome sugere, uma estatal municipal, que fora criada a fim de assumir os ativos relacionados ao transporte público da gigantesca São Paulo Tramway Light and Power Company, monopólio canadense responsável pelos bondes e pela eletricidade da capital até então.
Porém, a mesma CMTC que organizou o desmonte dos bondes também fez os estudos e a execução da implantação do sistema trólebus para sua substituição, e é aqui que finalmente chegamos no dia 22 de abril de 1949 com a inauguração da então linha que ligava a praça João Mendes no centro de São Paulo com o sinuoso e acidentado bairro da Aclimação, de população de perfil de classe média. Menos lembrado, porém, é a desativação dos bondes que serviam o bairro pouco depois dessa inauguração.
Em 1954 é inaugurado a rede aérea que atenderia o afluente bairro de Higienópolis e do Pacaembu. Hoje essa linha é a 408A-10, Cardoso de Almeida (na ponta do Pacaembu) – Machado de Assis (na ponta da Aclimação), atravessando o centro da cidade.
Recomendo fortemente ir de metrô até a estação República a fim de passear pela galeria do Copan e do Edifício Itália e dali pegar esse trólebus no ponto da Avenida São Luís, conhecendo esse trajeto e finalmente descendo no pequeno mas simpático parque da Aclimação, poucos pontos antes do final. É um passeio agradável e familiar e é um bom contato com a tecnologia para quem tem a curiosidade.
Ao longo dos anos 50 e 60 os trólebus em São Paulo foram expandidos, muitas vezes substituindo linhas de bondes mas também levando o transporte elétrico onde antes ele não chegava, e contando como vantagem um custo de operação competitivo devido a energia hidrelétrica barata, em contraposição ao elevado preço do combustível importado.
Em 1968 é encerrada a última linha de bondes da capital que corria ao longo do que seria hoje a Avenida Ibirapuera e Vereador José Diniz, ligando o Largo 13 em Santo Amaro com o Instituto Biológico na Vila Mariana. Essa foi a última linha de bondes a ser construída e hoje teria um padrão de VLT, com traçado plano e retilíneo no centro de uma larga avenida. Porém se engana quem acha que essa é uma questão local.
No mundo
O mesmo ocorreu no mundo todo quase que ao mesmo tempo, mas principalmente nas Américas. A Europa e a União Soviética no pós-guerra tiveram seu momento de reflexão e resolveram se reestruturar.
Com o petróleo caro e muita infraestrutura já existente, no geral optou-se pela manutenção dos sistemas de bondes. No frenesi modernista dos anos 60 muitos sistemas foram enxugados em prol do automóvel, porém bondes em corredores arteriais no geral foram mantidos e a Europa hoje está em uma posição melhor por conta disso.
Os trólebus na Europa tiveram seu boom nos anos 50 e 60 mas não foram tão felizes quanto os bondes e muitos foram desmantelados antes de chegar nos anos 2000.
Do outro lado da cortina de ferro, por conta da eletricidade barata devido às hidrelétricas e mais tarde usinas nucleares, e para conservar petróleo para fins de exportação, a prioridade sempre foi do uso da tração elétrica.
Grandes cidades planejadas com largas avenidas, altos e extensivos blocos residenciais em concreto pré moldado e com trólebus servindo de transporte articulador passaram a pipocar em todo o bloco soviético, especialmente em países do Pacto de Varsóvia. Hoje o leste europeu e a Rússia contam com a maior quantidade de sistemas de trólebus ainda em operação no mundo, sendo um gigantesco mercado que impulsiona muito da inovação nessa tecnologia.
Novo fôlego
Com a crise do petróleo de 1973 ocorre um novo interesse mundial pela tecnologia que em São Paulo se manifesta através do plano SISTRAN. Esse planejava modernizar e expandir o sistema a fim de diminuir a dependência do petróleo mas também de articular os transportes que ainda contavam com bastante fragmentação dado a quantidade de linhas e de companhias operando na cidade. Corredores de ônibus, conceito inventado em Curitiba, foram também construídos e eletrificados em São Paulo, especialmente o da Av. Paes de Barros, da Mooca, ainda operando (Linha 3160-10), e o da Av Santo Amaro, em eixo similar ao do antigo bonde (Linha 6500-10), hoje rodando com veículos a diesel.
Muito mais foi planejado mas não chegou a ser executado. Os veículos melhoraram muito em conforto e qualidade de rodagem, usando do aprendizado do Projeto Padron, conjunto de pesquisas orquestrado pelo GEIPOT, Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, estatal do tempo da ditadura que servia de articulador de planejamento urbano.
Devo pontuar que não há espaço aqui para saudosismo da ditadura, mas é dever do estado pesquisar, estudar e articular políticas públicas entre os poderes federal, estadual, municipal e também com o setor privado, para melhor atender as necessidades dos seus cidadãos e os interesses da nação. É de fato mais fácil fazê-lo em um regime autocrático, mas também não é desculpa pra não se esforçar, e no que tange a transporte público o processo da redemocratização deixou um vácuo tremendo nessa questão. O governo federal precisa se envolver mais, os governos estaduais precisam contribuir, e os municípios precisam estar receptivos e colaborarem. Empresas como GEIPOT e EBTU (Empresa Brasileira de Transportes Urbanos) muito fizeram nesse sentido em suas épocas.
O GEIPOT no fim da década de 70 realizou pesquisas e estudos visando encontrar um conjunto carroceria-chassis adequado para o transporte coletivo contemporâneo visto o que já existia mundo afora no momento. Esse seria o projeto Padron. A situação local era calamitosa dado que os ônibus eram literalmente encarroçados em chassis de caminhão, com motor dianteiro e longarinas muito altas tornando o embarque inconveniente.
Os estudos culminaram em um conjunto de regras e dimensões que podem ser resumidas em portas mais largas e piso mais baixo para um embarque mais cômodo, motor traseiro ou central sob o piso para maior conforto térmico e menor vibração pela carroceria, suspensão a ar para um rodar mais macio e motor de ao menos 200 cavalos com câmbio automático para melhor performance e conforto, sendo que desses apenas o câmbio automático foi deixado de lado devido ao excessivo consumo de combustível por conta das limitações da época.
Os trólebus do plano Sistran tiveram sua construção em cima das recomendações do GEIPOT. A década de 70 também trouxe grandes avanços naquilo que chamamos de eletrônica de potência. O barateamento dos transistores e o desenvolvimento dos tiristores que agora permitiam chavear potências nunca antes vistas para um circuito eletrônico permitiu criar novos controladores eletrônicos capazes não apenas de chavear as cargas internas de rádios ou televisores, como também de grandes motores elétricos.
O Brasil não estava atrás do mundo nesse sentido, tendo os Metrôs de São Paulo, do Rio de Janeiro e os trens metropolitanos da FEPASA em São Paulo operando com veículos utilizando da tecnologia chopper, que oferecia uma aceleração suave e sem solavancos, permitia economizar energia enquanto libera menos calor no ambiente sendo isso ponto chave no processo de decisão dado a necessidade da ventilação forçada em longos túneis. Os trólebus não ficaram de fora dessa revolução tecnológica e no fim da década de 70 e início da década de 80 a tração regulada por circuitos chopper (conhecido também como PWM, Pulse Width Modulation) passa a ser cada vez mais frequente nos trólebus da cidade.
Grandes projetos como o corredor ABD surgiram nesses anos 80 seguindo esses preceitos tecnológicos e esses novos paradigmas. Já havíamos aprendido que trólebus precisam de uma alta demanda para se justificar, e que sua performance era excelente em corredores, também transpondo montanhas com facilidade e acelerando bem mesmo com grande lotação.
Executado pela CMSP, Companhia do Metropolitano de São Paulo, a fim de atender às demandas crescentes do ABC Paulista, serve de referência no meio até hoje. Ele é atualmente operado pela NEXT Mobilidade, porém tem seu sucesso como maior defeito visto a saturação, superlotação e falta de margem para falhas.
Crise
O estado brasileiro nas três esferas, através de diversas estatais, teve papel fundamental na criação e manutenção de variados sistemas de trólebus. Muito estudo, pesquisa e desenvolvimento foi realizado em conjunto com a indústria, e não deixamos nada a desejar tecnologicamente com o que existia lá fora.
Porém dado que os anos 80 é lembrada como a década perdida e a década de 90 como a década das privatizações, chegamos no fim do século com os trólebus brasileiros em posição vulnerável. Com o gradual desmonte dessas estatais de planejamento e operação e as privatizações desenfreadas e mal feitas dos anos 90, inúmeros sistemas Brasil adentro agora se viam sem nenhum subsídio de passagem e tendo que pagar uma tarifa elétrica nominal o que se mostrou imediatamente inviável e culminou em inúmeras desativações que hoje, cerca de 30 anos depois, se mostraram equivocadas.
Com a privatização da CMTC e a criação da SPTrans as três grandes garagens de trólebus de São Paulo passaram de mãos em mãos até que em um misto de lobby e má vontade do poder público chegamos em 2003 com a maior desativação do Brasil, tendo a rede que possuía mais de 300km passando a contar com menos da metade. e os mais de 500 veículos indo para cerca de 200.
Sinto que a avenida Santo Amaro ilustra bem a falta de comprometimento que temos com nossa infraestrutura. Os bondes chegaram e a avenida serviu de modelo até os bondes passarem a ser vistos como inconvenientes e terem seus trilhos arrancados em um momento que a Europa já questionava esse modelo e criava os primeiros VLTs modernos. O corredor de ônibus com os trólebus chegaram mas no desafio da primeira reforma que exigia uma reconfiguração da rede aérea, foi tido como mais fácil arrancar tudo e colocar ônibus a diesel.
Presente
Hoje o eixo da avenida é atendido por um metrô, mas esse também está sujeito a um eventual desmonte com queda de qualidade de serviço. Tudo é passível de decadência, nada é permanente e tudo exige esforço contínuo através da vontade pública com verba e planos de manutenção. Temos que lembrar disso diariamente como usuários, como eleitores e como agentes do debate.
Aos trancos e barrancos nós chegamos em 2025 com apenas dois sistemas de trólebus operando no Brasil mas na mesma região geográfica:
O do ABC Paulista operado pela NEXT Mobilidade possui raízes modernas porém carece de planos de expansão adequados.
O da SPTrans coleciona linhas legadas servindo itinerários muitas vezes insuficientes para a configuração atual da cidade. Suas linhas com maior demanda são as criadas nos anos 70 e 80 durante o plano Sistran.
Finalmente temos Santos que possui uma linha que foi convenientemente paralisada na pandemia e agora possui micro-ônibus elétricos a bateria da BYD rodando no lugar enquanto a rede aérea está começando a se desmontar e seis veículos Mafersa com quase 40 anos de idade ficam encostados na garagem com destino incerto.
A tecnologia evoluiu, a eletrônica de potência deu mais um passo e permitiu usarmos motores de tração de corrente alternada, mais leves e simples, ao invés de continua, gastando assim menos energia. Baterias passaram a ser fonte viável de alimentação. Na última renovação da frota dos trólebus de São Paulo passamos a ter a possibilidade de um rodar autônomo porém muito limitado em velocidade e autonomia dado que o projeto contou com arcaicas e pesadas baterias de chumbo-ácido ao invés de um banco de baterias de íons de lítio.
Agora com piso baixo oferecendo maior acessibilidade, porém ainda pecando na ausência de ar condicionado, os trólebus voltam a andar lado a lado com o resto da frota de ônibus da capital, mas sempre sujeito a uma eventual defasagem. Devido a suavidade e simplicidade da operação de um motor elétrico, os esforços na carroceria são tão baixos que a vida útil do veículo é mais que o dobro relativo a de um veículo a diesel igual.
Isso traz uma enorme vantagem econômica ao sistema, mas exige serenidade e cálculo na hora da encomenda de novos veículos que tendem a ficar de visual datados ou com uma configuração ultrapassada perante seus pares a diesel. Isso pode ser amenizado com compras de lotes menores ao longo da vida útil do veículo.
A revolução das baterias
A eletrônica de potência voltada a motores de tração de corrente alternada mudou novamente as regras que definem o que é e não é economicamente viável.
Paralelamente, os primeiros carros elétricos modernos nasceram nos anos 90, por exigência regulatória do governo da Califórnia, sendo o GM EV-1 o maior símbolo desse momento da história. Logo após a exigência regulatória ter sido derrubada através de muito lobby, a GM conseguiu recolher todos os EV-1 em circulação visto que eles só eram disponíveis via leasing. Praticamente todos foram destruídos. Mesmo assim isso não conseguiu apagar a marca de seu legado.
Apesar de um conjunto de tração revolucionário com um inversor de frequência muito estudado pela indústria, o EV-1 ainda era limitado em autonomia na sua primeira geração pelas pesadas baterias chumbo-ácido, e mesmo na sua segunda geração com as baterias de hidreto metálico de níquel (Ni-Mh) a performance não havia melhorado o suficiente para ser competitivo com o veículo a combustão.
Na virada do milênio, na indústria dos eletrônicos de consumo, as baterias de íons de lítio estavam ganhando fôlego, dando longa autonomia a portáteis. O consumo desenfreado de celulares, laptops, videogames, tocadores de música e outras bugigangas eletrônicas fomentou a produção em escala de ciclos de baterias de íons de lítio que permitiu a queda do preço e viabilizou a produção dos primeiros carros elétricos de custo e usabilidade competitivo. Nesse contexto que nasce o Tesla Roadster, o Chevrolet Volt, o Nissan Leaf e outros.
No começo da década de 2010 as baterias de íons de lítio começam a ter densidades energéticas tão altas e preços tão baixos que os primeiros ônibus elétricos passam a se tornar viáveis. Chegamos em 2020 com muitas cidades demonstrando intenção de compra de extensivas frotas de ônibus movidos a bateria, agora maiores, mais potentes, climatizados, porém ainda caros e pesados. Muito se discute também o desafio que é a recarga massiva nas garagens durante a noite.
O trólebus de ponta
Bastante se critica a vulnerabilidade dos trólebus ao escape das alavancas. Mesmo com performance muito superior, a necessidade de estar permanentemente conectado à rede aérea é visto por muitos mais como uma fraqueza do que uma virtude, mas muitos também não entendem que a lentidão e o escape das alavancas é simplesmente uma consequência da falta de planejamento e do estado de decaimento em que chegamos.
É importante ressaltar que o trólebus precisa de um asfalto bem mantido para performar melhor. Uma cidade organizada deve possuir um roteiro e um cronograma de manutenção de vias, em que é definido a prioridade para o recapeamento. Às vezes a solução é tão simples quanto uma canetada para subir a prioridade das ruas e avenidas que contam com rede aérea de trólebus.
A rede aérea também é importante. Podemos considerar que devido a esfera de influência estadunidense, tendemos a usar equipamentos que seguem a escola da finada Ohio Brass. São tirantes, chaves, segmentos de curva no geral muito rígidos.
Estamos há ao menos 25 anos em uma mudança gradual para segmentos flexíveis, porém em entroncamentos e curvas ainda há margem para melhora. Na Europa existe como referência a Kummler & Matter que serve de fornecedora de equipamentos de rede aérea e também presta serviços de consultoria. Apesar da complexidade e do custo, a performance sob as redes usando esse tipo de equipamento tende a ser muito superior.
Um exemplo para ter noção de quão arcaico é a forma de fazermos as coisas é o acionamento dos desvios, também conhecidas como chaves. Existe uma bobina eletromagnética —uma solenoide — que define se a alavanca vai seguir reto ou realizará a curva, porém o acionamento dessa bobina se dá de forma totalmente analógica, em alguns lugares com um mecanismo acionado pelo ângulo do trólebus relativo a rede aérea (chave Selectric), em outros através da corrente consumida em um ponto pré determinado sendo necessário assim uma forte aceleração ou o uso de uma resistência para puxar a energia necessária pela bobina e armar o desvio. A abordagem moderna seria simplesmente usar um rádio transmissor para a atuação dessa bobina, tornando a operação relativamente mais flexível e a manutenção desses desvios mais fácil.
No vídeo abaixo podemos ver vários trólebus correndo em curvas e passando em chaves como se não fossem nada. Também contribui muito para essa performance o fato das alavancas usarem pistões pneumáticos em conjunto com as molas. É necessário a aplicação de cerca de 14kg para cima a fim de manter um bom contato do carvão da sapata coletora com a rede aérea, porém idealmente esse valor deveria mudar conforme a situação do veículo e do viário. Com um sistema pneumático para amortecer e possivelmente um pouco de eletrônica para atuar de forma dinâmica, a confiabilidade aumenta e o risco de queda das alavancas diminui, com um bônus de que passa a ser possível recolher e levantar as alavancas de forma remota.
Após falarmos sobre essas evoluções chegamos em um ponto de convergência tecnologica na qual devemos promover um meio termo entre o trólebus tradicional e o ônibus a bateria. Na Europa nos últimos 15 anos muito tem feito usando trólebus híbridos. Linhas com itinerários parcialmente eletrificados, usando de veículos que possuem capacidade de levantar a alavanca sozinho e encaixar em pontos específicos da rede aérea através do comando remoto do motorista.
Inicialmente os primeiros trólebus híbridos usavam de um pequeno motor a diesel de natureza estacionária para gerar a energia elétrica e assim mover o motor de tração quando desconectado, configuração conhecida como híbrido em série. Isso se tornou obsoleto com a possibilidade de integrar um banco de baterias de íons de lítio por um custo acessível.
Hoje é comum em cidades pela Europa, tanto as que já possuíam sistemas de trólebus como as que resolveram construir um do zero, ter esses veículos híbridos, conectando e desconectando da rede aérea várias vezes por dia, recarregando as baterias na parte do itinerário em que está conectado a rede aérea e descarregando-as na parte sem.
Isso traz várias vantagens. O custo do veículo é muito inferior ao de um veículo a bateria convencional. A estrutura de recarga nas garagens é simplificada visto que a recarga se dá de forma gradual ao longo do dia.
A maior vantagem de um trólebus convencional em relação a um ônibus com bateria é a eficiência energética que é muito superior dado que uma recarga nada mais é que a conversão de energia potencial elétrica em energia potencial química, que ocorre com perdas e desgaste da bateria. A transmissão direta de eletricidade além de muito mais eficiente, ocorre em tempo real.
Imagine que você está em um trólebus, acelerando em alta velocidade ladeira acima. É bom ter a ciência de que a energia elétrica que está te empurrando montanha acima acabou de ser criada. No mesmo segundo que você sobe a montanha, quem te empurra é a água que caiu em Itaipu, ou o átomo de urânio que quebrou em Angra e produziu o vapor para girar suas turbinas.
Ou melhor ainda, até mesmo o painel solar no telhado da casa na mesmíssima rua que seu trólebus está passando. Esse painel solar pode muito bem estar produzindo mais energia do que a casa tem capacidade de consumir, devolvendo a energia para a rede elétrica, que após subir de 220 volts pra 13.800 volts no transformador da rua logo chega na subestação do sistema trólebus e é abaixado para 600 volts em corrente contínua para ser imediatamente consumido pelo seu veículo, que agora te leva morro acima.
Ao descer esse morro do outro lado, seu veículo não freará em vão, convertendo o próprio motor de tração em gerador e tendo a energia produzida enviada diretamente para a rede aérea de forma que outro veículo possa imediatamente usar. Ônibus a baterias também possuem a capacidade de frenagem regenerativa mas com menos eficiência devido a sua capacidade de absorção energética limitada.
Com o barateamento dos painéis solares o custo da energia durante o período do dia também deve cair consideravelmente dado o excesso de geração, por isso ter fontes de demanda nesse período é importante. Ônibus a bateria colocam quase toda essa demanda à noite.
Existe também uma disparidade com os trólebus no que tange a performance dado que as baterias são muito exigidas por acelerações, subidas e pelo próprio sistema de climatização, problemas não existentes ao ter fonte de energia garantida na rede aérea. Ao longo dos anos sua autonomia também deve diminuir por desgaste, influenciado pelos fatores acima citados.
O peso também é um problema que gera maior estresse no viário com aumento no custo de sua manutenção. Sendo um peso morto no veículo, existe um problema retroalimentado: Se instala mais baterias para ter mais autonomia durante o dia, só que por isso o veículo fica mais pesado e mais energia é necessário para tirá-lo do lugar, logo, mais baterias são adicionadas. Trólebus com baterias menores que terão mais ciclos de recarga ao longo do dia tendem a ser uma solução melhor por conta disso.
Não é necessário recarregar de madrugada um banco enorme e pesado de baterias, puxando inúmeros amperes de uma vez só em um horário sem luz solar barata com uma infraestrutura de alimentação cara que só deve ser usada em um período, isso para ter 300 km de autonomia ao longo do dia que com os anos pode diminuir e deixar de ser suficiente.
Claro que isso tudo é melhor que um veículo a diesel, e pode ser um bom plano de substituição, mas onde existe trólebus eles são inerentemente melhores e com baterias de íons de lítio com mais autonomia que as atuais de chumbo-ácido, as garagens que hoje possuem complexas redes aéreas com rede bi-filar para todas as posições de estacionamento podem ser consideravelmente simplificadas, barateando muito a sua construção.
Não devemos esquecer que a vocação do trólebus é a performance. Um veículo elétrico tem seu conjunto auto-motriz simples, com apenas um motor e uma redução, quando não somente o motor. Hoje é possível instalar motores diretamente no cubo das rodas e muitas cidades na Europa tem experimentado essa abordagem. No Brasil há pelo menos 20 anos não é incomum projetos de trólebus articulados com mais de um eixo tracionando, possuindo um motor com diferencial tanto no carro líder quanto no reboque.
Por esses fatores, linhas de trólebus com todo o itinerário eletrificado são essenciais em corredores onde performam melhor, mas ainda podendo ser aplicado em grandes avenidas vicinais de perfil troncalizado, especialmente se a área for de perfil acidentado.
O trólebus com baterias para autonomia na casa dos 30 Km abre a possibilidade de uma maior capilarização do transporte elétrico visto que é possível operar conectado na rede enquanto recarrega ao longo dos corredores e avenidas, porém libertando-se dessa ao adentrar nos bairros.
Futuro
É aí que enxergo a maior falta de visão do novo corredor ligando o ABC Paulista com a capital. A Eletra fez muito bem em desenvolver seu trólebus híbrido a bateria usando dos preceitos tecnológicos explicados acima, mas o Governo do Estado com a NEXT está sendo muito simplista em usá-los em um corredor novo que idealmente deveria nascer completamente eletrificado.
Essa tecnologia é boa para a capilarização do sistema, não para o uso completo em corredores. Nesse caso se torna um desperdício. A única desculpa que sobra é ser uma solução pontual que antecede a completa eletrificação do corredor, que deve ser cobrada pela sociedade.
De qualquer forma, a tecnologia tem muito potencial no sistema da capital onde linhas que compartilham do itinerário com trechos que já possuem rede aérea poderiam utilizá-la. Isso exigiria investimentos na repotencialização do sistema, que abriria margem também para a completa climatização da frota. Idealmente, corredores também deveriam ser eletrificados de ponta a ponta e trólebus comuns (com bancos de baterias apenas para manobras) comprados para elas.
Garagens podem ser readequadas de forma simples, nova rede deve ser construída usando o que há de melhor ao redor do mundo, e um plano de reconstrução da rede atual deve ser contemplado. Deve ser desenvolvido planos de manutenção preventiva e não tão somente corretiva como feito atualmente.
O fantasma da poluição visual pode ser mitigado usando tirantes que aproveitem as paredes das edificações existentes, e postes que combinam funções como luz ou semáforos, limitando a poluição visual a entroncamentos de construção mais complexa.
Nesse aspecto não podemos nos esquecer que o maior vilão aqui tende a ser as dezenas de concessionárias que usam e abusam dos postes da prefeitura e não mantém um inventário adequado dos próprios ativos, abandonando fios e poluindo nossas calçadas.
Mas enfim, é fato que com bom asfalto, boa rede e novas tecnologias, os trólebus devem ter protagonismo ao longo do século XXI a fim de atingirmos as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Isso já está acontecendo no mundo e apesar de tratar nesse texto muito da questão local, tudo aqui pode e deve ser aplicado em outros locais. Para tal é necessário a criação de novos mecanismos que permitam o estudo, o financiamento e assim a viabilização da abertura de novos sistemas pelo Brasil.
São Paulo ocorre de ter um bom ponto de partida que apesar de andar em constante ameaça existencial pode servir de base para algo muito maior, voltando a servir de referência regional e mundial, mas isso não significa que outras cidades não possam desenvolver e implementar um sistema do zero e assim também ter protagonismo.
Encerro esse longo texto desejando tudo de bom e do melhor para todos que tiveram a paciência de ler, e pedindo para refletir com carinho nas questões propostas.
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