A cidade anti-urbana

Nas frias páginas redigidas pelo tecnocrata, a regra é clara: é a cidade, basicamente, um agregado compacto de um número considerável de pessoas. É, em suma, uma comunidade densa em que pessoas vivem consideravelmente mais próximas umas das outras e dos serviços.

Tais características já são, por si só, combustível para a formação de agremiações mui distintas de suas contrapartes campesinas. Ora, se no campo o tempo é pautado pelas colheitas e perspectiva de trabalho sazonal, na cidade há constante demanda por pedreiros, ferreiros, marceneiros e afins, e seus amigos provavelmente morarão a uma distância andável.

De súbito, a cerveja, a dança, a música se tornam companheiras diárias. Tavernas operadas por anônimos competem pela atenção dos passantes com letreiros chamativos. Às vezes, recorrem até a berros. É na cidade que o comércio floresce. E não por acaso, locais de intenso comércio na Europa medieval tornaram-se posteriormente cidades que existem até hoje.

A isto se dá o nome de vida urbana. «Urbana», que vem do latim «urbe». Os romanos usavam o termo «Abe Urbe Condita» para denotar os anos passados desde a formação da cidade estado de Roma, da mesma forma como nós contamos os anos desde o nascimento de Cristo. Esta cidade não é qualquer cidade: é a pólis, como chamavam os gregos.

Para todos os efeitos, a cidade era o estado. Não existiam estados nacionais e impérios eram formados pela federação de outras cidades estado anexadas a suas esferas de influência. Este poder político emprestou à cidade uma outra característica: a de ser um centro cívico e administrativo.

Cidades têm poder. Tanto como somatória de seus quocientes eleitorais, como da força da grana de todos os pagadores de imposto sob sua jurisdição. É na cidade que se trava mais intensamente a luta por espaço. E é nela que se pode se ver e ser visto. Ser urbano é ser, sob este ponto de vista, ser habituado a este caos controlado, ladeado por todos os ângulos pelos mais diversos aspectos da vida.

Todavia, nem todo habitante da cidade é um inequívoco «cidadão». Alguns se ressentem. Tomam, pela necessidade, um terreno longínquo, o único que lhes cabia nos bolsos, e ali vivem como se ainda habitassem suas chácaras envoltas pelo véu escuro da noite e de macieiras, laranjeiras, galinheiros, e por aí vai. Entrincheirados neste enclave híbrido da urbanidade com ruralidade, produzem uma realidade que funciona mal em ambos os casos.

Esta é, enfim, a «urbanidade anti-urbana», da qual gostaria de tratar. A urbanidade contrariante do ex-campesino que se viu obrigado a largar a foice, para tomar o martelo. E, ainda por cima, se viu obrigado a fazê-lo enquanto mora muito longe da indústria que o emprega, gastando valioso tempo de vida em um deslocamento não remunerado pela companhia.

Como pode um pacato ser humano interiorano se ver na figura de um «cidadão» se, desde sempre, «cidade» era como se chamava o distante centro, onde tudo, de fato, era como uma cidade. Redes de comunicação e energia consolidadas, comércios, restaurantes, escritórios. Quem ali vivia e trabalhava, talvez pudesse colecionar privilégios suficientes para se portar como orgulhoso cidadão.

Os outros, presos na inexpugnável rotina casa->indústria, inevitavelmente se viam excluídos deste seleto clube. E, com isto, as áreas suburbanas foram tratando de criar suas própria soluções, de onde nasceram os pequenos centros comerciais, como, por exemplo, a Rua Zilda, na Casa Verde, a antiquíssima Freguesia do Ó ou mesmo Santo Amaro, para citar alguns exemplos em São Paulo.

Com o tempo, estes enclaves produziram uma urbanidade periférica que, se supria estas comunidades desoladas, resultava num tecido urbano fragmentado, integrado por algumas rotas saturadas e assoladas pelo intenso deslocamento pendular.

E aqui preciso pontuar que São Paulo é o ponto focal desta crítica. Talvez não seja a única cidade anti-urbana. É possível que Los Angeles, com toda a sua agressividade e comunidades espremidas entre as famigeradas «freeways», as auto-bahns urbanas do centro do capitalismo, possa ser tão anti-urbana quanto nós. E, ademais, é a nós mais fácil falar de nossa casa do que a de outrem.

Esta urbanidade torta, forjada à sombra do capitalismo mal regulamentado durante os anos de formação dessa terra, nos deixa como herança um tecido urbano esgarçado em que, por onde quer que se olhe, há erros. Há obras feitas de qualquer jeito, há fios pendurados, há reparos executados da forma mais vagabunda e barata. Tudo isto fruto de uma comunidade que se conforma com a calamidade de tanto que esta fez parte de sua vida.

Sou ambicioso, contudo. E de um idiota otimismo. Quero pensar que este pequeno, obscuro e provavelmente esquecível blogue contribua o seu 0,1% com a mudança desta cultura perniciosa, que corrói nossa relação com o espaço e nos impede de construir uma cidade integrada, com serviços à porta e distâncias caminháveis, e que, a cada vez mais, nos tem entregue ao mundos dos condomínios-clube acastelados, abastecidos por condôminos motorizados e mercadinhos internos, acessíveis apenas aos que ali moram.

Pode ser que doa no começo. Mas é para ontem uma urbanidade receptiva, que demonstre aos mais desvalidos que a cidade não é propriedade de uns poucos afortunados do centro, mas também deles, sem os quais as complexas engrenagens metropolitanas não girariam.

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